Agora sou um vira-lata

Último capítulo: Aiii, os humanos

Passei alguns dias sozinho, vagando pela praia e pelas ruas dos condomínios turísticos do Guarujá. Sentia dor, medo e fome. Não sabia onde encontrar comida nem água, a não ser aquela salgada, que só fazia aumentar a minha sede, algo que aprendi depressa. Era melhor, por isso, caminhar na areia do que no cimento escaldante das calçadas sem marquises, que me queimavam as patas.

Mas se eu era ignorado nas ruas do centro, lá era ainda pior. Havia poucas pessoas, e as que por lá circulavam demonstravam até asco com a minha presença, quando não medo. Não encontrei bares nem sacos de lixo malfechados com restos de comida. Não encontrava nada além do calor vazio do deserto de concreto.

Na praia, passei a me relacionar mais com meus semelhantes. Cheirava outros cães, brigava com alguns por um pedaço de pão molhado ou um resto de feijão e conhecia algumas fêmeas, cujo cio me atraía como uma mariposa segue a luz de uma lâmpada. Eu não sabia ainda, mas estava me distanciando dos seres humanos. O fato de eu ter levado um violento chute na boca foi o divisor de águas na minha vida.

Estava deixando de ser um cachorro abandonado. Agora, eu era um vira-lata.

Não acreditava mais nas pessoas. Não esperava mais comida de ninguém. Não queria mais ser simpático e nem queria mais fazer amizades. Na verdade, eu não confiava mais nos humanos.

Dos semelhantes que conheci na orla, muitos estavam doentes, fragilizados e tristes, apenas sobrevivendo. O pior deles foi um filhote, ainda bem pequeno. O coitadinho quase não tinha mais pelos. Ele me seguiu durante vários dias. Chegamos a dormir pertinho, um protegendo o outro. Mas um dia cansei do sofrimento da praia – apesar do grande prazer que era ter um espaço sem carros.

Voltei para a minha antiga rua.

Retornei e encontrei o meu amigo dos botijões. Quando ele me viu, agachou-se no chão de braços abertos e fui correndo em sua direção. Fiquei muito feliz em ver que ele me esperava. Quando me viu, deu um monte de carinho e dividiu a sua marmita comigo. Comi desesperado. Depois, passei aquele dia seguindo-o pelas ruas do Guarujá.

O problema foi a noite. A rua se esvaziou e eu não tinha para onde ir, nem onde ficar. Dormi na calçada, mas ao entardecer do dia seguinte voltei para a marquise. Encontrei alguns moradores de rua conhecidos e continuei dormindo lá. Mais de dois meses haviam se passado. Eu havia voltado ao meu ponto de partida.

Depois de alguns dias do regresso de minha solitária aventura, comecei a sentir uma coceira insuportável na barriga e em uma orelha. Eu não sabia, mas agora, além de ser um vira-lata, eu era também um vira-lata sarnento.

No próximo capítulo: A sarna

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Até a próxima segunda.

Lambidas.

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