Medo e fome

Capítulo anterior: Andar, andar e andar

Não consegui dormir na segunda noite que passei na rua. Apenas cochilei. Acordei logo e não consegui mais pegar no sono. O chão estava frio. Eu tremia muito, devido à falta de comida também. É fato que os cães temos um sono naturalmente leve, pois não somos predadores por excelência e temos de estar em alerta o tempo todo. E dormimos bem desse jeito. Naquela noite, porém, foi muito diferente. A minha sensação de insegurança era devastadora. Meus músculos estavam prontos o tempo todo para fugir ou lutar. A adrenalina não me deixava relaxar.

Levantei e comecei a caminhar.

No escuro, o centro do Guarujá muda completamente. O cenário é assustador. Em vez de cruzar o tempo todo com pernas agitadas e apressadas. À noite, elas são substituídas por ratos e baratas, à procura do mesmo que eu: comida. De longe é possível enxergar alguns poucos carros, essas máquinas barulhentas com luzes aterrorizantes. As poucas pessoas que passam a pé são diferentes. A energia que emana delas costuma ser muito pesada. Agressiva ou submissa, ela é frequentemente desequilibrada. E sempre imprevisível.

Caminhei bastante e comecei a reparar que eu estava passando novamente por certas ruas e lugares. Estava desorientado. Não sabia como sair dali nem se havia algo além daquilo. A luz do dia ainda estava parcialmente escondida atrás das casas e lojas. Seguia meu faro. Havia cheirado fezes de um cão e sabia que o dono delas havia comido frango e arroz. Os humanos não entendem porque fazemos isso, mas o odor de outros animais nos diz muito sobre seus hábitos e sua vida. Se algum semelhante meu havia comido isso por lá, talvez eu conseguisse achar a mesma coisa para mim.

Virei uma esquina e vi que um botequim estava abrindo. Parei na frente e fiquei olhando para o moço alto de bigode que levantava a porta de ferro. Ele me sorriu, e pela primeira vez achei que alguém poderia ter compaixão por mim. Fiquei sentado na frente do estabelecimento abanando o meu grande rabo peludo, a boca aberta, a língua dependurada. Dizem hoje que eu pareço estar sorrindo quando estou assim. Não sabem de nada. Nós sorrimos com o rabo.

O rapaz voltou com uma tigela de alumínio com arroz, frango desfiado e cascas de pão. Ele se agachou e colocou o recipiente no chão na porta do bar. Atirei-me desesperadamente sobre a comida. Engolia sem mastigar direito. Mas não tive tempo nem de ficar feliz. Em questão de segundos, ouvi um surdo rosnar atrás de mim. A fome me havia feito cometer um erro. Todo meu olfato estava voltado para o alimento e não percebi a aproximação de um cão muito maior do que eu. Também ignorei o cheiro da urina e a demarcação de território na área. Eu sabia que não estaria sozinho. Estava prestes a aprender a primeira lição das ruas.

O cachorrão investiu em direção do meu pescoço, com os dentes à mostra e o pelo eriçado. Quando ele certamente ia começar a sacudir a sua cabeça com a minha entre seus dentes, o dono do bar veio com um balde na mão e com agilidade jogou água em nós dois.

Isso fez com que o cão se assustasse e eu pudesse correr. Corri mais uma vez desesperadamente. Precisava salvar a minha vida. Perdi a comida, continuava com fome e com sede. Agora também estava ensopado. Continuei andando e me lembrando da vida que eu tinha na chácara. Ração e água fresca. Mas não tinha muito tempo para ficar relembrando a minha antiga vida. Eu tinha sido abandonado e precisava aceitar. E o mais importante, eu precisava comer e beber.

Próximo capítulo: Enfim, a comida

Leia também: O que aconteceu comigo?

Lambidas, e até a próxima.

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