Amigo é coisa para se guardar

Capítulo anterior: Enfim, comida

Eu já estava havia um pouco mais que duas semanas na rua. Milhares de pessoas haviam passado por mim. Nenhuma me fez um carinho ou pensou no que eu estava sentindo. Ninguém se preocupou se eu estava desesperado, assustado, com medo ou qualquer coisa assim. Todas soltavam “chispa” ou “passa” ou qualquer coisa que significasse que eu deveria me afastar. Poucas, mas muito poucas pessoas se importaram com a minha sede ou fome. Com isso, pude aprender uma coisa dos humanos. Eles são muito vaidosos.

Reparem: todo mundo diz que ama e respeita os animais. Percebi que, sim, os humanos realmente gostam de animais, mas, infelizmente, só gostam daqueles que estão bem tratados, limpos e cheirosos. De preferência, os deles. Quando um de nós está com uma doença como eu, uma bicheira, ou com sarna, logo é enxotado, como se fosse lixo nojento e malcheiroso.

Quando somos jogados na rua, a vida se torna rapidamente degradante. A sujeira consome os nossos pelos e pele, o asfalto quente machuca as nossas patinhas e a incerteza do que vai acontecer mata a gente aos poucos. Nunca entendi o motivo de os humanos agirem assim. Eles acham que dá para fazer reciclagem com tudo, com as garrafas, com os sentimentos, com os papéis, com os animais e, até mesmo, com os seus semelhantes. É uma pena.

Eu estava revoltado naquele dia. Ser ignorado por tanto tempo é massacrante. Naquele dia, porém, um ser humano diferente da maioria me enxergou e, mais do que isso, decidiu me ajudar, permitindo que entre nós nascesse uma amizade. No momento em que aquele homem compartilhou seu marmitex, dividindo o que tinha para que eu comesse de sua mão, estava selada a minha lealdade e gratidão. A partir daí, depositei toda a minha fidelidade naquele homem.

Nascido na Bahia, e por causa do sol de onde veio e do Guarujá, ele tinha a tez bem morena, como um caramelo. Possuía uma aparência fraca, no entanto. Era muito magro, mas não muito alto. No sorriso faltavam alguns dentes, mas era verdadeiro. Tinha todos os dedos queimados por conta das bitucas e cachimbos de crack que fumava. Era uma boa pessoa. Por onde andava carregava e puxava uma carroça feita de madeira vagabunda. O quadradinho sob duas rodas sempre estava cheio de jornais, revistas, garrafas e outros tesouros que ele achava nas ruas.

Passamos a fazer um dueto. Dividíamos tudo. Compartilhávamos o tempo, a companhia e, principalmente a comida. Depois que passei a seguir o carroceiro, raramente eu precisava rasgar sacos de lixo para satisfazer a minha fome. Ele sempre arrumava um jeito ou uma forma de conseguir comida para nós dois. Como um mágico, ele sempre tinha uma garrafinha verde cheinha de água transparente. Nunca mais eu passei sede.

Uma vez, depois de ter andado bastante desde cedo, o dia acabando e a noite começando, nós nos sentamos em um degrau de um comércio fechado qualquer e ele começou a me fazer um cafuné. Como era gostoso! Fazia tempo que não sentia como é bom receber um carinho. Ele mexia, mexia na minha cabeça, pescoço, focinho, orelha.

“IIIIIIIIIING”, soltei um grunhido de dor. Ele levantou a minha orelha e não acreditou no que viu. Havia um monte de larvas brancas comendo a minha carne. Com um olhar de generosidade, ele disse que íamos resolver isso também. Passou a mão em minha cabeça de novo. Abriu duas caixas de papelão que estavam dentro da carroça e ajeitou no chão. Em cima colocou alguns jornais e deitou. Ele me chamou e deu três palmadas sobre o colchão improvisado, mostrando o local exato para eu deitar. Deitei, me aconchegando do seu lado. Adormeci.

No próximo capítulo: A cura da bicheira

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Até a próxima segunda.

Lambidas.

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