Ah, os humanos

Capítulo anterior: Ofurô de cachorro

 

Com o tempo, eu já estava familiarizado ao centro do Guarujá, aos locais que conseguíamos comida e com o meu amigo. A vida era estável e segura. Já não era estranho ele sair para encontrar outros amigos humanos e demorar em regressar. Às vezes, voltava estranho, não me chamava pelo nome, a voz se modificava, as palavras não me faziam sentido, e a entonação mudava. Eu ficava preocupado. Não sabia ao certo o que acontecia com ele. Mas cedo ou tarde, ele ficava como sempre foi.

Um dia, enfim, descobri. Ele se sentou em um dos nossos papelões, retirou uma lata amassada da mochila que ficava dentro da carroça e começou a queimar uma pedrinha que se equilibrava em cima da latinha. Com a boca ele sugava a fumaça pelo buraco da lata. Essa fumaça era muito malcheirosa, mesmo para os padrões caninos, habituados que somos a um mundo de odores dos quais vocês não têm a mais pálida ideia. Mas além de fedorenta, parecia feitiço. Em questão de segundos, meu amigo ficou transtornado. Falava sem parar. Ficou assim por alguns minutos, em êxtase. Passou, e ele voltou a um estado quase normal. Não estava satisfeito.

Ele se levantou mais uma vez e me mandou ficar onde estava. Partiu, e eu continuava a esperar o meu companheiro no mesmíssimo lugar. Ele voltou, até que rápido, com outra pedrinha amarelinha e a mesma lata. Repetiu-se o mesmo procedimento de minutos atrás. Equilíbrio, fogo e satisfação. Mais uma vez ele estava diferente, mas agora saciado. A partir dali, eu testemunharia essa cena centenas de vezes. De vez em quando, ele trazia uma garrafa com um líquido transparente de cheiro muito forte. Parecia álcool.

Naquela noite dormimos bem perto um do outro. Até parecia que ele estava se despedindo de mim, que era a última vez. Nós já fazíamos aquela dupla havia um bom tempo. Já haviam se passado muitos meses, talvez um ano, que eu tinha sido levado do sítio para o litoral. A minha bicheira estava curada, e eu não passava mais fome e sede. Eu achava que havia encontrado um amigo para a vida toda. Acreditava naquele homem, achava que ele ia cuidar de mim e me proteger independentemente do que acontecesse. E eu retribuiria com a minha lealdade e fidelidade até o último dos meus dias. Estava enganado e naquele dia eu me decepcionaria mais uma vez com os humanos. Vocês têm uma facilidade impressionante para abandonar, reciclar, trocar…

Na manhã seguinte, quando o céu já estava laranja, eu acordei. O meu amigo estava em pé, pegando algumas poucas coisas do quadradinho de madeira e colocando em sua mochila. Ao contrário dos outros dias, ele não me fez carinho e nem soltou o costumeiro “bom dia, Bob”. As coisas pareciam estranhas. Sentei-me no papelão e fiquei encarando aquele homem. Eu prestava atenção em tudo, nos objetos que ele guardava e nos que ele deixava. Intuía que algo muito ruim, triste e desesperador estava para acontecer.

O homem se agachou e colocou uma tigela com água do meu lado e disse algumas coisas, as quais eu nunca entendi, mas senti melancolia em cada som diferente que saía da sua boca. Ele falou bastante. Depois, levantou-se e passou a mão em minha cabeça e foi. Eu não me levantei e também não fui atrás, como todas as outras vezes. Sentia que não era para segui-lo e ali fiquei aquele dia inteiro. A noite chegou e eu me ajeitei no mesmo papelão de sempre ao lado da carroça. Dormi com a esperança de que na manhã seguinte o meu amigo estaria de volta.

Nunca mais voltei a vê-lo.

Próximo capítulo: Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar

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Até a próxima segunda.

Lambidas.

 

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