Três quartos dos cães do mundo não têm um lar, diz estudo
Pense em todos os cães por aí (que você conheça ou não): labradores, poodles e labradoodles; huskies, westies e dogues de Bordeaux; pit bulls, spaniels e vira-latas adoráveis que vão a pet shops. Some todos os cães de estimação no planeta e você chegará a cerca de 250 milhões.
Mas há cerca de 1 bilhão de cães na Terra, segundo algumas estimativas. Os outros 750 milhões não têm coleiras antipulga. E certamente não têm humanos que os levem para passear e recolher suas fezes. Eles são chamados de cães de rua, vira-latas, entre outros nomes, e reviram as latas de lixo e perambulam pelos bairros de grande parte do mundo.
Em seu novo livro, “What Is a Dog?” (“O que é um cão?” em tradução livre, ainda não lançado no Brasil), Raymond e Lorna Coppinger argumentam que se você realmente quiser entender a natureza dos cães, é preciso conhecer esses outros animais. A grande maioria não é de animais de estimação perdidos, dizem os Coppingers, mas sim animais que vivem de lixo soberbamente adaptados, as coisas vivas mais próximas dos cães que apareceram pela primeira vez milhares de anos atrás.
Outros cientistas discordam a respeito da genética dos cães, mas reconhecem que três quartos de um bilhão de cães valem a pena ser estudados.
Os Coppingers são figuras importantes na ciência canina há décadas. Raymond Coppinger foi um dos professores fundadores da Faculdade Hampshire, em Amherst, e ele e Lorna, uma bióloga e escritora de ciência, realizaram trabalho inovador com cães de trenó, cães pastores, cães de guarda e a origem e evolução dos cães.
“Fizemos tudo juntos”, ele disse recentemente, enquanto se sentavam na varanda da casa que construíram, situada em cerca de 40 hectares de terras, conversando longamente sobre cães, de rua ou não, e as raízes do profundo interesse deles pelos animais.
Ambos tiveram cães na infância. Lorna teve de várias espécies. Um tio trouxe para Raymond seu primeiro cão, um filhote de uma cadela que costumava ficar próxima da rampa de carga de uma indústria química em Cambridge, Massachusetts. “Ele viveu 17 anos e se parecia com qualquer vira-lata do mundo”, ele disse.
Após se formarem pela Universidade de Boston, onde ambos estudaram nos anos 50, eles continuaram a tê-los.
“Eu dei um cachorro para ela como presente de formatura”, disse Raymond. Era um cruzamento de collie com pastor-alemão.
Depois que ambos se formaram, eles se mudaram para a área de Amherst, onde Lorna lecionava russo e obteve um mestrado em biologia da vida selvagem, enquanto Raymond obteve um Ph.D. em zoologia, ambos na Universidade de Massachusetts. Eles realizaram estudos de campo juntos, mas sobre assuntos diferentes, e então mergulharam profundamente no mundo canino.
Contestando a ciência
Em 2001, o livro deles “Dogs: A Startling New Understanding of Canine Origin, Behavior & Evolution” (Cães, um novo entendimento surpreendente da origem, comportamento e evolução canina, em tradução livre, ainda não lançado no Brasil) contestava a forma como os cientistas acreditavam que os cães se originaram.
Eles argumentavam contra a visão predominante de que um dia um caçador-coletor pegou um filhote de lobo em uma toca e deu início a um programa de criação. Em vez disso, eles argumentavam, os cães domesticaram a si mesmos.
Alguns cães selvagens começaram a andar por perto dos seres humanos para comer suas sobras e gradualmente evoluíram para comedores de sobras dependentes dos humanos. Nem todos na ciência canina compartilham essa posição, mas muitos pesquisadores a consideram a rota mais plausível para a domesticação.
Durante suas viagens ao longo dos anos, para observar cães pastores, apresentá-los a criadores de ovelhas que não usavam cães e para participar de conferências, eles notaram a presença de cães de rua onde quer que estivessem, e após algum tempo começaram a pensar nas vidas dos cães.
Raymond Coppinger disse que certa vez um criador de ovelhas navajo lhe contou que tinha um bom cão pastor, “nem muito grande, nem muito pequeno”, algo que também descrevia perfeitamente os vira-latas. Eles são maiores nos climas mais frios, mas nos trópicos, ele disse, um cão de 13 quilos, da cor de um leão, é a norma.
Eles são completamente polígamos. “Pode haver tantos pais em uma ninhada de filhotes quanto o número destes”, disse Raymond Coppinger.
E após cerca de 10 semanas, os filhotes já se viram sozinhos. A maioria dos filhotes não sobrevive, como é o caso com muitos animais selvagens.
Eles têm conexões notavelmente diversas com os seres humanos. Alguns vivem completamente por conta própria em lixões. Alguns são cães de bairro, reconhecidos e que às vezes são alimentados pelas pessoas que vivem em certa área. Outros se alimentam e procriam por conta própria, mas passam as noites nas casas de pessoas.
Às vezes são adotados pelas pessoas. Mas na verdade, diz Coppinger, são os cães que adotam as pessoas.
Por que os lobos não são cães
Os Coppingers estavam acompanhados na conversa recente em sua casa por Kathryn Lord, uma ex-aluna de Raymond Coppinger e atualmente uma pesquisadora na Faculdade Hampshire, que estuda o desenvolvimento e o comportamento reprodutivo dos cães, inclusive os de rua.
Ela compartilhou seu entendimento do que torna um cão um cão, e não um lobo, por exemplo. Os filhotes de lobo dependem de seus pais ou de outros adultos regurgitarem parte do alimento digerido.
“Isso praticamente não mais existe nos cães”, ela disse. Acontece, mas relatos sugerem que nos cães de rua isso pode ocorrer várias vezes por semana.
O que os Coppingers e Lord apontam com esses comportamentos é que não se trata de os cães se importarem menos ou serem menos nobres que os lobos, mas sim de como se adaptaram perfeitamente às vidas que levam.
Eles não precisam ser grandes e fortes para abater uma presa. Eles não precisam do tipo de cuidados dos pais e instruções sobre caça que os filhotes de lobo recebem. Como disse Lord, os filhotes de cães não precisam pegar e nem matar nada. “Eles só precisam achar um melão apodrecendo e comê-lo, o que já podem fazer com 10 semanas.”
Os filhotes, após serem desmamados, não podem competir com os adultos, de modo que a menos que doença ou a carrocinha reduza a população adulta, a maioria deles passa fome.
Mas eles têm um verdadeiro superpoder de reserva, que pode ajudá-los a escapar de seu destino: eles podem convencer um ser humano a alimentá-los.
Raymond Coppinger lembrou de uma mulher na África do Sul que tinha muitos cães em sua casa e ao redor. Ele perguntou a ela como é que ela acabou ficando com tantos cães. “Eu não sei”, ele lembrou de a mulher lhe ter dito. “Eles simplesmente continuavam aparecendo.”
Mas o que são os cães de rua ou vira-latas? São uma espécie ou uma superespécie à parte? Ou são apenas uma mistura de muitas espécies com origens muito misturadas para poderem ser rastreadas?
Adam Boyko, um biólogo da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Cornell que foi inspirado a estudar a ciência canina pelo livro de 2001 dos Coppingers, também compilou DNA de vira-latas de todo o mundo. Um de seus estudos concluiu que os vira-latas da Mongólia estão no centro da diversidade canina. Isso sugere que estão geograficamente mais próximos do local onde os cães primeiro evoluíram.
Outras evidências sugerem que os cães se originaram na Europa ou na China, e Boyko é um dos vários participantes de um grande estudo que está sendo liderado por Greger Larson, de Oxford, para uso de DNA antigo e de fósseis para esclarecimento de parte da confusão sobre a origem dos cães.
E outros vira-latas parecem apresentar uma composição genética diferente. Por exemplo, Boyko e seus colegas analisaram amostras de DNA de vira-latas em ilhas remotas em Fiji e na Polinésia Francesa, que esperavam que mostraria um padrão histórico de migração, à medida que as pessoas e seus cães se mudavam de um lugar para outro.
“Quase sem exceção, os cães eram 99% europeus”, ele disse, o que significa que seus ancestrais eram cães nos navios europeus que vieram às ilhas do Pacífico eras atrás. Os cães em outros lugares, como Bornéu, ele disse, quase não exibem traços de raças europeias.
Raymond Coppinger sugeriu que os cães evoluíram após a invenção da agricultura, talvez por volta de 8.000 anos atrás, e que os vira-latas atuais são os mais próximos desses primeiros cães. Mas essa ideia conta com pouco apoio de outros cientistas.
A principal meta dos Coppingers é chamar atenção para a vasta maioria de cães do mundo que estão escondidos em plena vista. Eles representam um tesouro de informação científica.
Apesar dos Coppingers reconhecerem o custo social de animais que não são vacinados e que ficam soltos pelas ruas, eles argumentam que matar os cães, como alguns países fazem durante epidemias de raiva, não ajuda. É impossível matar a todos, e como procriam rapidamente, a população logo se recupera.
Os Coppingers também não simpatizam com os grupos de resgate que, como colocou Raymond Coppinger, “sequestram e mutilam” os cães de rua do Caribe e de outras partes, e os trazem para os abrigos americanos para viverem como animais de estimação, “onde se tornam totalmente dependentes e totalmente restringidos”. Isso deveria beneficiar os cães, mas Raymond argumenta que são retirados de um ambiente social rico, com muitos cães, para vidas em relativo isolamento.
O que fazer? Os Coppinger sugerem uma resposta simples. De um jeito ou de outro os cães de rua dependem de lixo. Se a sociedade quiser menos cães de rua, só há uma solução garantida.
Menos lixo.
Retirado UOL