As larvas, o óleo e a dor

Capítulo anterior: Amigo é coisa para se guardar

Eu e meu parceiro acordamos com o sol queimando o corpo. Ele se levantou e prometeu voltar com alguma coisa para nós comermos. Eu fiquei onde eu estava. Sabia que ele voltaria. Por isso, apenas me espreguicei juntando as duas patinhas da frente esticadas sobre o cimento da calçada, no movimento de quem está agradecendo a Deus em oração. Em cima do jornal e do papelão que meu amigo tinha preparado com esmero na noite anterior, continuei à sua espera.

Ele voltou, mas tinha mais do que comida em suas mãos. Dentro da sacola plástica branca, havia três embalagens de marmitex e, na outra mão, uma garrafa com um líquido grosso preto. Primeiro, comemos. Ele ficou com dois recipientes de alumínio e eu, com um. Um inteirinho para mim, cheio de arroz e feijão com frango. Fiquei muito contente e satisfeito. Depois bebemos água, e ele me chamou.

– Bob, venha cá – disse ele, me dando um nome com o qual eu logo me acostumaria.

E eu fui. Sentei-me ao seu lado, e ele começou a me fazer carinho. Começou no focinho, depois nos pelos do meu pescoço, cabeça e orelha. Soltei um choro de dor. Aquele ferimento doía muito, e já estava me acompanhando já fazia mais ou menos um mês, desde o sítio. Ele segurou com força e pedia para eu manter a calma. Eu me debatia por reflexo, por causa da dor lancinante, mas tentava ficar imóvel.

– Calma, Bob – sussurrava ele. Vamos resolver isso juntos, meu amigo. Esses bichos que estão comendo você vão embora já, já.

Eu não entendia nem uma palavra do que ele dizia, é claro. Por mais que escutemos o seu idioma o tempo todo, nosso cérebro é incapaz de aprender uma língua. O máximo que alguns de nós conseguimos é memorizar precariamente certos sons e associar algum sentido superficial a eles. Mas entendemos a entonação nas frases e sentimos a energia com que elas são ditas. Assim, compreendemos se vocês estão bravos, felizes, nos elogiando ou até mesmo nos xingando. Na verdade, ouvimos até mais do que é falado: ouvimos o que o coração diz. E naquele momento eu sabia que aquilo que estava acontecendo comigo era para o meu bem.

É preciso uma boa dose de sangue-frio para lidar com uma bicheira. A doença se apropria da carne viva e vai literalmente devorando a vítima, abrindo uma cratera que não para de se ampliar se não for corretamente tratada. A aparência é, de fato, asquerosa. As larvas se movem como estivessem se apoderando de um cadáver.

Com as unhas encardidas de suas mãos nuas, o homem beliscava as larvas que estavam dentro da minha orelha, depois as puxava e espremia para que elas morressem. A cada beliscão que elas levavam eu uivava. O movimento se repetiu por diversas vezes na carne viva. Era necessário, ele dizia. Depois de acabado esse procedimento, o homem pegou aquela garrafa e desenroscou a tampa.

– Agora, Bob, vou passar esse óleo na sua orelha. Vai melhorar.

Realmente melhorou, mas apenas na hora. Não se pode tratar miíase, mais conhecida como bicheira, assim. Em ferimentos causados por essas larvas, ocorre uma destruição de todo o tecido em volta. Um berne mal tratado pode chegar a uma necrose, isto é, a morte daquele tecido, ou até mesmo um tumor. Por sorte, eu não tive nada disso, mas fiquei com uma cicatriz preponderante e áspera. Por isso, quando um peludo estiver assim, leve-o ao veterinário, por favor. Não acredite nos sites de perguntas da internet. Há gente bem intencionada, mas muito ignorante, que não sabe o que diz.

Eu não sabia de nada disso quando meu companheiro retirou todas as larvas, lambuzou o meu ferimento com um óleo queimado e me deu um beijo na cabeça. Levantou-se e começou a dobrar e a guardar todos os nossos papelões e jornais. Colocou tudo em cima da carroça e me convidou para ir à praia.

– Bob, vamos ver o mar?

No próximo capítulo: A areia, a água, a praia…

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Até a próxima segunda.

Lambidas.

 

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