A carrocinha

Capítulo anterior: A sarna

Eu vagava havia um tempão. Andava de lá para cá, dali para lá. Estava doente. Quase não tinha pelos na barriga e atrás das patas. Eu já não era um cachorro bonito. Estava magro, sujo, com os poucos pelos que me restavam emaranhados. Tomava água de poças de chuva ou do que escorria para a sarjeta de uma garagem lavada. Comia restos de comida de gente, de bicho, tudo que eu encontrava pela frente. Rasgava os sacos de lixo à procura de algo para matar a fome e demoraria muito para entender que o alimento contaminado e estragado em alguns casos eram a causa de eu ficar ainda mais doente. Naquela época, eu ainda achava que os humanos guardavam alimento na calçada. Por isso, tinha raiva dos lixeiros, que, de repente apareciam e levavam tudo embora. Quanta ingenuidade a minha…

O fato é que quanto mais minha saúde piorava, mais eu era rejeitado pelos humanos. A vida era perigosa e complicada. As pessoas mal chegavam perto de mim. E, por isso, estava decidido ficar longe delas. Deixei novamente de ir à rua dos meus cada vez mais raros amigos humanos, onde antes me davam sempre água e comida. Perguntava-me todo santo dia o motivo de tantos abandonos. Por que fora deixado para trás tantas vezes? Será que eu não era um bom cachorro?

Meu instinto me dizia que eu devia ter feito algo muito ruim para ser tão desprezado. Mas o quê? Admito que às vezes sou meio mal-humorado e que gosto de ficar quieto no meu canto. Não sou de ficar lambendo e pulando em cima das pessoas. Gosto de carinho, mas não por causa disso deixo porem a mão em qualquer lugar. No entanto, sei dar a pata, fazer uma cara simpática e, acima de tudo, sou leal e um bom companheiro. Não sujo a casa e não mexo em nada que não seja meu, mesmo que esteja no chão – seja um sapato ou um brinquedo. Só lato para dar alertas e se me sinto ameaçado. Por que, então, eu não tinha um lar? Quando os humanos veem um cão de rua, pensam que o pior é de nossa vida é dormir ao relento e não saber nunca quando vai comer novamente. De fato, é péssimo, mas muito pior é a falta de um dono e de atenção. Não é à toa que não trocamos jamais um carroceiro por um palácio.

É por esse motivo que aquela solidão me doía tanto quanto andar na companhia dos parasitas da sarna. Como aquela coceira era insuportável. E eu não parava de me coçar. Até quando revirava o lixo. Foi assim dia após dia. Voltava para a marquise e dormia em cima de algum jornal ou papelão que me cediam – desde que eu ficasse longe dos outros cachorros. Essa vida já tinha virado rotina, até que um dia, um belo dia ensolarado, um carro branco com o logo da prefeitura do Guarujá estacionou do meu lado. De lá, saiu uma mulher gorda toda vestida de branco e calçando luvas da mesma cor. Ela me chamou e veio se aproximando com calma. Quando me aproximei do pedaço de salsicha que estava em sua mão, senti algo apertando o meu pescoço.

Eu havia sido laçado. Era uma longa haste de madeira. Numa ponta, um homem com cara de poucos amigos. Na outra, uma corda plástica me sufocava. Quanto mais eu me debatia, mais ela apertava. Estava apavorado. Nas minhas andanças pela rua não havia visto nada semelhante. Só sabia que não era nenhum humano em busca de um companheiro de quatro patas. Ele me levantou no ar e comecei a engasgar, enquanto desesperadamente tentava colocar minhas patas sobre a vara para tentar me sustentar. Em vão. Achava que estava morrendo. Estava quase desfalecendo, quando a mulher amarrou minha boca com outra corda plástica. Estava imobilizado. Fui jogado dentro do veículo, que partiu sacolejando pelo asfalto irregular da cidade. Aos poucos, voltava a respirar, mas estava ofegante – mais por causa do pavor do que pela falta de ar. Estava aterrorizado. Para onde estavam me levando?

No próximo capítulo: A vida no CCZ

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Queridos leitores,

O ‘Diário de um cão’ deixara de ser publicado nas próximas duas semanas por conta das festas de final de ano. Estarei de volta no dia 07 de janeiro. Bom Natal  a todos e um ótimo 2013.

Lambidas natalinas.

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