A vida na rua também pode ser boa
Muita gente vê cães abandonados nas ruas (na vida dura do sol escaldante ou da chuva inclemente), suspira de pena, mas segue seu caminho e não olha para trás. A maioria dessas pessoas tem uma fieira de razões para não dar um lar a um cachorro, mas há quem prove que, mesmo em situações adversas, é possível cuidar – e bem – de um cãozinho. É o caso de Kyel. Ele vive nas ruas da cidade mais antiga do Brasil, São Vicente, no litoral sul de São Paulo, e só isso já seria motivo para ele não adotar um animalzinho, quando ele mesmo precisa de amparo. Esse filho de mãe sergipana e pai japonês lutou – literalmente – para ficar com a cadelinha Cristal, já grandinha, mas apenas um filhote de cinco meses.
“Saí na mão com o dono anterior dela”, conta Kyel, enquanto exibe as feridas ainda acabando de cicatrizar nos braços e pernas. “O cara bebia e batia nela todo dia, com pau, com corrente, com chutes”. Até que um dia ele não aguentou. Partiu para cima do outro rapaz para impedir uma agressão e conseguiu fugir com Crystal nos braços. Hoje, eles vivem sob uma marquise no estacionamento do supermercado Dia que fica na rua Frei Gaspar. A dupla chama a atenção. Ela, pelo jeito relaxado de dormir à tarde sobre uma camiseta cuidadosamente colocada por Kyel para ela não ter contato com o granito frio. Ele, pelo carinho com que a trata o tempo todo.
Cristal também chama a atenção por causa da pelagem preta, brilhante, luzidia, o que demonstra a saúde da cadelinha e a qualidade da alimentação. “Ela só come ração e frutas”, orgulha-se. “Eu como no Bom Prato e, graças a Deus, comida nunca nos faltou até agora.” Kyel pode não ter um lar, mas faz o possível para que a rua seja um lar para Cristal. Ele usa chinelos de dois pares diferentes, mas Cristal tem sua própria mochila, cor-de-rosa. Dentro dela, ração, brinquedos e até vermífugo. Além disso, a alça de uma bolsa feminina é improvisada como guia. “Eu só passeio com ela na coleira”, diz ele, consciente dos cuidados com um cão. A cadelinha foi vacinada recentemente, um adestrador está ensinando alguns comandos e o que Kyel quer agora é uma castração.
“Ela me protege”, conta ele. “Com ela, posso dormir sossegado, pois se alguém se aproxima de madrugada em atitude suspeita, a Cristal rosna e me acorda.” O medo dele é que ocorra o mesmo que houve com outra cadelinha, a Pérola. “O cliente de uma pizzaria saiu, colocou-a no carro e foi embora”, relembra. “Eu estava naquela do outro lado da avenida, mas o trânsito estava muito grande e não consegui chegar a tempo”, conta. “Quando vi que era tarde demais, desmaiei em plena rua.” Kyel não se esquece dela, mas seu consolo é imaginar que quem a roubou tinha intenção de dar a ela um lar. “Acredito que ela tenha uma vida melhor do que comigo”, suspira. Tomara.
O supermercado não gosta muito da presença da dupla lá. Mas os clientes não parecem se incomodar. Vários o cumprimentam quando passam. Mas Kyel sonha. Sonha com um emprego de caseiro, onde possa dar um teto para Cristal e ter um emprego digno. Mas enquanto isso não acontece, ele faz da rua o melhor que pode para os dois – o que parece ser melhor do que, infelizmente, muitos cães recebem entre quatro paredes.