A gata chata

2012-05-17-19Capítulo anterior: A quarentena

O maior problema mesmo naquela casa era a gata, chamada Gatsy. Ela vivia me perturbando. Se eu estava fechado na lavanderia, ela vinha e ficava desfilando na frente da porta de vidro que separava os ambientes. Ela sabia que eu não podia alcançá-la e me provocava. Quando eu era autorizado a passar para a varanda, ela se agachava, contraía os músculos das patas traseiras, prontas para um bote e, como um balão, se inflava a ponto de parecer uma enorme bola de pelo. Os gatos e outros animais fazem isso para parecer maiores e intimidar os predadores. Sabemos disso, mas sempre funciona. As intenções da família da pequena Bel eram boas, mas aquela gente estava brincando com fogo. A mãe de Bel raciocinara que se aquela felina já convivia com um cachorro, um a mais não seria problema. Estava enganada. Quando Gatsy chegou, três anos antes, o cão já vivia lá, e foi ela quem precisou se adaptar. Desta vez, porém, a gata se sentia a dona do lugar e fazia questão de deixar isso claro para mim. Além disso, a mãe de Bel superestimou minha capacidade de interagir com a gata. Eu passara mais de três anos nas ruas, hostilizado por humanos e animais, e via Gatsy como uma ameaça à minha integridade física, ainda mais diante das provocações diárias e as frequentes tentativas de me acertar com suas unhas afiadas. Não bastasse tudo isso, os instintos arraigados ao longo de milhares de anos nos colocavam como inimigos naturais. Afinal, gatos e cães são predadores por natureza. E isso é ancestral. Aquelas lindas histórias de amor entre nós, que às vezes até aparecem na televisão, não passam de exceções que servem apenas para confirmar a regra. Antes de sermos domesticados, há pouco mais de dez mil anos, nós e os gatos éramos caçadores. Lutávamos duramente na natureza pela sobrevivência. A vantagem que os cachorros temos sobre eles é, geralmente, apenas o tamanho. Por isso, Gatsy me enfrentava. Embora de menor porte, era a dona do território e contava com o apoio dos humanos. Logo percebeu também que, enquanto circulava solta, um humano me continha com uma guia. Na prática, era mais poderosa do que eu. Assim, aquela gata segura de si sempre me dava o bote, tentando arranhar o meu focinho, um dos pontos fracos dos cães. Tentava, mas nunca conseguia, graças aos cuidados da mãe de Bel e da própria menina, comoventemente interessadas em me dar uma chance de ter um lar. Só que um dia, Gatsy foi mais esperta. E conseguiu. Fazia poucos dias que estava naquela família que tão bem me tratava. Minha sarna melhorava a cada dia e eu já me sentia forte de novo. Mas durante uma das minhas curtas caminhadas dentro do apartamento, a gata saiu silenciosa e sorrateiramente de um quarto, atrás de mim, e, decidida, me deu uma patada. Acertou perto dos olhos. Fiquei nervoso, e aquele cão que tentava de tudo para ser aceito em um lar desapareceu. Em seu lugar, emergiu automática e instintivamente um ancestral primitivo. Virei-me como um raio já com os dentes à mostra de forma ameaçadora. Não consegui pegá-la, e ela me arranhou de novo. Tentei lançar-me sobre ela, mas fui puxado pela guia. Estava nervoso. Rosnava. Forte. Era o meu definitivo sinal de que a gata havia passado dos limites. Os cães rosnam para avisar que o próximo passo é morder, atacar, se o outro – seja um animal ou um humano – não parar o que estiver fazendo. O som assustou todos os moradores humanos, mas a gata não sentiu medo e voltou a me atacar. Foi quando Bel tentou separar a briga. E se deu mal. A gata também havia incorporado seus mais primitivos instintos e arranharia quem se metesse em seu caminho. E a tão pequena Bel foi ferida no braço. Minhas esperanças de uma nova vida começavam a desmoronar. No próximo capítulo: Mais surpresas na minha pequena vida Para acompanhar todos os capítulos da minha história, clique aqui. A ordem cronológica é de baixo para cima. Até a próxima segunda. Lambidas.

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