Mais uma estrelinha no céu

nengus

Para contar a história do Nengos, torna-se inevitável não voltar no tempo e se lembrar do Picho e do Fred. Os três cães foram os três irmãos caninos que tive enquanto morei com a minha mãe. As passagens do Picho e do Fred na minha vida foram curtas, marcadas de emoções, mas a do Nengos, não. Há quem diga que ele viveu mais que um cachorro nas mesmas condições viveria.

O pequeno Nengos chegou em nossas vidas há 14 anos. Minha mãe, atendendo aos pedidos do meu irmão, comprou um dachshund nessas feiras de supermercado. Aquele cão comprado era especial e certamente seria descartado. Afinal de contas, ele era um tanto esquisito. Em uma gaiolinha de exposição, ele dividia o espaço com mais três irmãos, dois caramelos e um preto. Na ocasião, o Nengos não chamava a atenção dos demais compradores, mas chamou a do meu irmão. Aquele cão só comia, mordiscava os irmãos, tinha a ponta do rabo quebrada e era manchado – procriadores dizem que cães manchados não entram na classificação de unicolor ou de bicolor, mas sim arlequim, animais que podem ser tigrados ou com manchas irregulares nas cores cinza e bege. Isso não tira o cachorro do grupo do AKC, American Kennel Club, ou simplesmente, o famoso pedigree.

Por falar em pedigree, ele foi vendido como dashound teckel, mas nunca ficou igual ao Cofap nem muito menos parecido com uma salsicha. O Nengos não era comprido e roliço como os outros exemplares da raça. Ele sempre foi um cachorro gordo, com músculos fortes e patas curtas. Um mal-humorado, rabugento e caçador, ele era o xodó da família. Como nós, ele passava o dia todo na casa da minha avó para que minha mãe pudesse trabalhar. Ele era um barato! Sabia andar de skate, colocava as duas patinhas em cima e com as de trás ele dava o impulso. Era uma boa companhia, cúmplice e ouvinte. Afinal, ele não comentaria nunca os meus segredos de pré-adolescente. Não gostava de ficar sozinho. Quando saíamos, ele se ajeitava cuidadosamente em cima de um caminho de mesa, com tampo de vidro. Parecia um vaso. Ele gostava também de passear dentro de uma mochila nas minhas costas, apenas com a cabecinha de fora.

Os dias foram passando, os anos foram passando e, com isso, fomos envelhecendo e a vida foi mudando. A energia e disposição do Nengos, não. Ele continuava caçando borboletas no jardim, capturando passarinhos no quintal, irritando-se a cada reflexo de óculos, relógios ou de cds e roubando comida – como a vez em que ele comeu as coxas do peru de Natal. Por falar em comida, que cachorrinho comilão ele era! Qualquer visita para ser bem-vinda em casa precisava cumprimentá-lo. O cumprimento do Nengos era com comida. Todos os amigos, familiares e vizinhos já conheciam o ritual. Tinha gente que levava petisco da própria casa, como um pedaço de pão, uma bolacha salgada ou qualquer coisa canina. Da mesma forma que era glutão, ele também era bravo e ciumento. Em todos os lugares onde moramos, nenhum vizinho escapou. Nós avisávamos que ele era bravo, mas ninguém acreditava. Afinal de contas, como podia se era tão pequeno? Tinha gente, que mesmo sendo avisada, desafiava o perigo e fazia carinho nele. Em troca, ele sempre dava uma dentada. Eu mesma tenho uma cicatriz de uma mordida dele. O Nengos não permitia que eu levantasse a voz. Toda vez que eu falava alto, ele avançava. Se eu brigasse com o meu irmão então, era certeza de mordida.

Eu me mudei. Depois eles se mudaram para longe. Não existiu um dia na minha vida em que eu não me lembrasse do Nengos. Depois dessa mudança, no auge dos seus 10 anos, o Nengos adoeceu. Teve câncer, viveu dias difíceis. Houve profissionais de veterinária que não acreditavam em sua recuperação e sugeriram a eutanásia. Ele ficou apático por dias. Tomou um monte de remédios, fez cirurgia, retirou o tumor e todo sistema reprodutor, além do baço. Ele melhorou. A cada dia, apresentava um avanço. Voltou a ser o mesmo Nengos de sempre, que caçava insetos, que levava os brinquedos dele até a panelinha de comida, para não serem tocadas, que não permitia que abraçasse minha avó sem umas boas rosnadas.

Mais quatro anos se passaram, e a velhice começou a ficar evidente. Aos poucos, ele foi perdendo a visão, a audição e começou a se aquietar. Tornou-se um cão sossegado, mas nervosinho, que não negava o cachorro que fora a vida toda. De uns meses para cá, ele ficou pior. Começou a ter reais dificuldades de locomoção, por conta das patas traseiras, e os olhos, devido a uma úlcera, estavam permanentemente irritados. Cinco dias atrás parou de comer. Estava tomando soro, mas resistindo bravamente. Nessa noite, ele não dormiu. Teve dificuldades para respirar. O coração parecia que ia explodir de tão forte que batia. Hoje à tarde o Nengos partiu. Partiu para um lugar melhor. Onde não existe dor, não existe doença, não existe maldade, assim como ele e todos os animais. Lá, nesse lugar, só tem amor. E de amor, o Nengos entende. Teve veterinário que dizia que ele só viveu tanto por causa do amor que ele recebia. Ele teve a sorte de ter sido um cachorrinho que foi amado do primeiro dia que chegou até o dia que foi embora.

Escrito com muitas saudades, para você amigo Nengos.

Texto dedicado à minha mãe, ao meu irmão e especialmente à minha avó Wilma, que tanto amou e fez por esse serzinho.

*Nengos: Nome inventado ao longo de sua existência. O nome verdadeiro do Nengos era Mancha. Ele nunca foi chamado de Mancha. Era Nenê, Monstrengo, Nego, Nengos, Nenguinhos.

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