O envenenamento do Oscar
Era um dia normal como todos os outros na minha nova casa, e a rotina me fazia bem, me acalmava. Estávamos em casa Erika e eu. Ela fazia faxina. Depois de tudo limpo e o chão seco, ela veio com a guia na mão e colocou em volta do meu pescoço. Eu dava pulinhos de felicidade. Íamos sair. Estava na hora mesmo. Como em todos os outros dias, demos uma grande volta no quarteirão. Aproveitava cada minuto do passeio para cheirar todas as moitas e cantinhos. Fazia todas as necessidades que precisava na rua. Nunca fazia xixi e nem cocô dentro de casa. Preferia a rua e, por isso, esperava sempre o meu passeio, por mais que eventualmente demorasse.
Como sempre, Erika recolhia minhas fezes em um saquinho plástico para depois jogar no lixo. Daquela vez não foi diferente. Quando entramos no condomínio, ela foi em direção a um latão comunitário de lixo. Enquanto ela jogava a bolsa plástica, algo me chamou atenção no chão. Era só um pedacinho de carne. Segui meus instintos de cachorro vira-lata e comi aquele pedaço apetitoso. Que mal haveria? Afinal, vivi na rua quase toda minha vida e já tinha comido de tudo.
Entramos no apartamento e me aconcheguei, como de costume, no meu edredom. Enquanto isso, minha dona conversava comigo sentada no sofá. Menos de meia hora depois, porém, senti uma forte dor no estômago. Muito forte. Engasguei do nada. Assustada, Erika me chamou para beber água, acreditando que me aliviaria. Dei outra engasgada e a segui. Não estava me sentindo nada bem. Perdia força progressivamente e, me quase me arrastando, consegui chegar aos seus pés. Minha cabeça doía muito. Por isso, não conseguia levantá-la mais. Ela pesava, parecia que ia explodir.
Erika passou de preocupada a desesperada. Pegou a minha mandíbula e viu que minha boca estava espumando.
De repente, ela deu um grito:
– O Oscar está morrendo!
Eu estava morrendo? O que era morrer? O que estava acontecendo comigo?
Não sabia o que estava acontecendo. Eu me contorcia de dor e nem imaginava o motivo. Ao mesmo tempo, engasgava com uma baba grossa que surgia sem parar e enchia a minha boca. Comecei a vomitar em golfos dolorosos. Não compreendia nada. Apenas sofria. Era uma dor insuportável, indescritível. Só quem passou por isso sabe a força de uma pequena medida de veneno. E poucos sobrevivem para contar a história.
Sentia uma estranha e forte, muito forte dor na barriga. Meu corpo inteiro tremia. Os bichos não sabem o que é a morte porque não têm nem consciência de que é a vida. Apenas estamos aqui, lutando todo dia por instinto para viver o momento. Por isso, não existe o medo da morte. Naquele momento, porém, sentia o gosto da morte na boca, e a dor que ela causava estava dentro de mim. Eu estava sendo consumido por dentro, quimicamente, como se um ácido estivesse calcinando meus órgãos. Já não tinha mais forças para ficar em pé. Meus músculos tremiam, convulsionando. O fim estava cada vez mais perto, mas eu não sabia.
Apesar dos meus quase 20 quilos, ela me ergueu com um braço só. Eu não conseguia mais ajudar, me segurar. Estava completamente frágil de tanta dor. Estava me entregando. Erika me colocou dentro do carro, desmilinguido como um boneco de pano. Ela saiu acelerando forte. Sujei o carro todo. Ela estacionou bem na frente do hospital veterinário. A porta, porém, estava trancada. Descompensadamente, esmurrava a porta de vidro. Ninguém aparecia para abrir a porta.
Uma moça toda de branco e de cabelos loiros, por fim, abriu a porta. Minha dona me tirou do carro, mas não conseguia andar. Percebi que a morte estava na minha frente quando ela me colocou no chão. Nessa hora, não aguentei o peso do meu corpo. Minhas patas arriaram e caí. Ela me pegou no colo e me carregou novamente.
A veterinária me colocou na maca e ao ver os fluidos amarelados que saíam de mim, não teve dúvida para afirmar, ainda que tentasse ser gentil em um momento como aquele:
– Ele foi envenenado por chumbinho. Ela constatou.
A veterinária olhou para mim com um olhar sério e preparou uma mistura de um pó preto com água. Colocou em um copinho descartável e entregou para Erika com uma seringa de injeção sem a agulha.
– Faça ele beber tudo, aos poucos, mas sem demorar muito – ordenou.
Explicou que não podia sobrar nada, mas não explicou por que. Agora, ela tinha que cuidar de um gato que havia sido castrado. O bichano foi colocado numa jaula ao meu lado. Foi quando vi que estava realmente mal. Meus instintos não reagiram absolutamente nada à sua presença. Normalmente, eu teria pulado sobre aquelas grades e não desistiria até abri-la e atacar a presa. Mas ele não me dizia nada naquele momento. Senti até um certo medo, pois não seria capaz de me defender se me atacasse. E ele sabia da minha fragilidade. Por sorte, ele também não estava se sentindo forte depois da cirurgia.
Quando Erika, no entanto, tentou me fazer engolir aquela gosma preta e amarga, resisti. Uma parte escorreu pelo canto da boca. De qualquer forma, eu também não tinha forças para engolir. Se eu fosse capaz de saber que aquela coisa seria capaz de salvar minha vida, pediria uma tigela cheia até a boca. Aquela substância escura se chama carvão ativado.
Devido à sua rapidez de ação, é considerado um dos principais agentes no tratamento de envenenamentos. Ele passa pelo aparelho digestivo e vai capturando quimicamente o veneno. Ele é um reforço até para o fígado, o maior laboratório e filtro dos mamíferos, onde ajuda a depurar o sangue envenenado. Depois que todos os poros do carbono são preenchidos, ele é eliminado nas fezes.
Por isso, eu precisava tomar tudo aquilo. Era difícil. Cada gole, uma náusea. Enquanto Erika apertava a seringa cheia de carvão na minha boca, ao mesmo tempo ela pedia insistentemente para que eu não a deixasse. Depois de 15 minutos, toda aquela pasta preta havia acabado. Eu ainda sentia as mesmas dores, os mesmos tremores. Os vômitos, porém, pareciam ter dado uma trégua. Continuava com uma agulha espetada na pata e com a cabeça encostada no ombro de Erika.
A principal causa de morte no caso de envenenamento por chumbinho é a parada respiratória. O animal para de respirar porque os músculos vão ficando cada vez mais rígidos e tensos a ponto de não conseguirem mais fazer os movimentos necessários para a respiração. Os médicos chamam isso de hipertonicidade. É o contrário do que acontece quando a gente está dormindo. O sistema nervoso faz os músculos perderem tônus, ou seja, relaxarem. Por isso, quando sonhamos que estamos correndo não saímos pela casa: a musculatura não responde. No caso do envenenamento, ela fica tão dura que também não reage. Por isso, minhas dores eram tão horríveis. O chumbinho provoca contrações, espasmos, tremores – tudo tão forte e violento que todo o corpo fica rígido.
A veterinária entrou novamente na sala e acrescentou um diurético na sonda espetada em minha pata. Foi quando me dei conta pela primeira vez de que a sala do pronto socorro estava cheia de gaiolas com diversos gatos dos mais variados tipos. Até então haviam passado despercebidos para mim. Havia um branquinho, pequeno, bem perto. Comecei a rosnar para ele, ainda fraco. Aquele era o primeiro bom sinal de que eu estava melhorando. Os olhos de Erika se encheram de lágrimas. Uma ponta de esperança surgia nos olhos dela. Percebi isso e me senti um pouco mais forte.
A salivação excessiva, a dificuldade de respirar e os espasmos haviam melhorado. Os meus batimentos cardíacos estavam se normalizando, as dores diminuíam, mas o mal-estar ainda era grande, assim como os tremores. De fato, estava melhor, mas longe de estar bom. Foi quando a veterinária explicou que a partir daquele momento teriam início as horas mais determinantes para saber se o envenenamento me deixaria com alguma sequela – ou mesmo se eu sobreviveria ou não. O tratamento havia neutralizado a ação do veneno, mas a extensão do estrago que já causara era imprevisível. Algum órgão podia estar comprometido. E, sim, eu poderia ficar com problemas neurológicos, o que afetaria o movimento das minhas patas. Talvez não andasse mais.
Minha dona voltou a chora. Ela desmoronou.
Agora, começava a caminhada contra a sorte. As primeiras 24 horas seriam cruciais. As 48 seguintes determinariam as sequelas.
Voltamos para casa, e a vontade de fazer xixi era enorme, incontrolável. Andava com muita dificuldade e ia deixando poças de líquido clarinho, quase transparente, por onde quer que passasse. Fiz na maca, fiz no chão do consultório, fiz na rua antes de entrar no carro, fiz quando chegamos ao nosso prédio. Fiz diversas vezes dentro de casa enquanto perambulava procurando um canto para me deitar. Nenhum lugar parecia servir. Mas era normal e esperado. Era efeito do diurético e era necessário ajudar meu sistema digestivo a expelir tudo o que restasse de toxinas.
Deitei e me enrodilhei do lado da cama, em cima do meu surrado edredom, do lado de Erika. Deitada, ela mexia nos meus pelos enquanto eu tentava dormir. Os tremores ainda atrapalhavam. Ainda tinha muitas dores. Ela também não dormiu de preocupação. Temia que a qualquer momento eu piorasse e queria estar pronta para correr comigo de volta ao veterinário. Ela não parava de me acariciar. E isso também me deu forças. Nunca ninguém tinha feito carinho em mim durante tanto tempo. Eu conquistara aquele coração.
Quando clareou o dia, estávamos todos bem despertos e em pé. Não havíamos chegado nem sequer à metade das tais 24 horas decisivas. Eu continuava fraco, fragilizado e inteiro dolorido. Ainda tremia e meus músculos estavam exaustos e enrijecidos. Por causa disso, comecei a marchar. Caminhava como se fosse um boneco de corda. Erika continuava preocupada, mas à medida que eu não piorava aumentava a indignação dela com as pessoas. Foi quando ela começou a pensar de verdade na autoria do envenenamento. Ela se perguntava sem parar como e por que as pessoas podiam ser capazes de fazer tanto mal a seres inofensivos como eu, tão gratuitamente. Mesmo que eu fosse um cão que não parasse de ladrar – o que não era verdade, porque eu ainda nem tivera tempo de me sentir dono da casa para latir lá dentro –, não se justificava tamanha violência. Erika não parou de chorar e pensar o dia inteirinho no tamanho da maldade humana.
As primeiras 24 horas haviam se passado, e eu ainda estava vivo.
Com certeza o veneno havia sido colocado na área comum de um condomínio onde os vizinhos se cumprimentam todos os dias. E quem já tinha feito essa maldade uma vez poderia fazer de novo. Apesar disso, o veneno não deve ter sido colocado para mim. Exatamente uma semana antes, o gato de uma vizinha caiu morto na frente dela, também envenenado por chumbinho. Meus donos só souberam disso dias depois e ficaram ainda mais revoltados com duas vítimas no mesmo lugar, provavelmente obra da mesma pessoa. Erika não sabia, mas se Deus escreve direito com linhas tortas, o envenenamento foi o preço a pagar por um bem maior, pois Erika, inconscientemente, estava prestes a pagar o mal com o bem.
Os dias se passaram, eu estava bem outra vez, mas a sensação incômoda de quem havia sido violentada não saia do coração da minha dona. Ela começou a pesquisar mais ainda sobre a causa animal e descobriu que existem milhares de animais, especialmente os cachorros, vítimas de uma brutal maldade, negligência e desrespeito das pessoas. Erika foi apresentada a um mundo de crueldade e ficou ainda mais indignada e com vontade de poder fazer alguma coisa por nós, peludos. A imagem que ela tinha na cabeça passava como um filme: eu me revirando na maca do hospital veterinário, as lágrimas. Tudo isso a movia e fazia com que procurasse um modo de colocar aquele sofrimento para fora. Passou semanas a fio pensando até que teve uma ideia.
Em uma noite gelada de julho, Erika sentou-se do meu lado e pegou o computador. Escreveu algumas páginas e rabiscou o desenho de algumas patinhas de cachorro num pedaço de papel. Mostrou para algumas pessoas a ideia e fez acontecer. No dia 23 de julho de 2012, o www.6patas.com.br foi ao ar. No dia 25 de junho de 2013, a minha biografia ‘Oscar, o cão vencedor’ foi publicado. No dia 26 de abril, o 6 Patas ficou em terceiro lugar no Top Blog Brasil na edição 2013/2014, pelo voto do júri popular na categoria intitulada ‘Bichos e Animais’. E, hoje, dia 11 de maio de 2015, comemoramos três anos de renascimento. Meu e o da Erika. Para nós, a vida nunca mais foi a mesma.