CACHORROGATONOTÍCIAS

Prazer, Bidu!

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Bidu

O 6 Patas só aborda temas caninos, mas abre hoje, excepcionalmente, espaço para um gato. O Bidu. Independentemente do peludo, todos eles são especiais e fazem você se sentir especial todos os dias da sua vida.

Leia agora o emocionante texto do jornalista Rodrigo Capelo, que descreve uma linda e verdadeira história de amizade.

O Bidu virou uma estrelinha. Vá brilhar!

 

 

“Disseram-me que este blog, 6 patas, fala apenas sobre cachorros. Nenhum problema. O gato desta história está mais para canino do que felino. A começar pelo nome: Bidu. Não consigo me lembrar quem deu o nome do cachorro do Franjinha, muitos anos atrás, para este bichano que de bichano tem muito pouco. Mas este alguém, quem quer que seja, acertou em cheio. Não há gato mais cachorro do que o Bidu.

Ele nos escolheu faz pouco mais de dez anos. Foi um episódio bastante trágico, para falar a verdade. Naquela época, morávamos em quatro: eu, minhas duas irmãs mais novas e minha mãe. Quer dizer, havia bem mais patas na casa. Tínhamos uma gata, já velhinha, que estava conosco desde que éramos bem crianças, a Xuxa. Tínhamos também um gato franzino, com aparência magrela, de vira-lata, mas bem gente boa, o Rafinha. E tínhamos um novo gatinho, que minha mãe ganhou de uma de suas alunas, todo pretinho, apelidado de Juninho, que acabara de chegar.

O Juninho ficou conosco por alguns dias, no máximo. Dormiu a primeira noite comigo, a segunda noite comigo, e minhas irmãs, enciumadas, quiseram-no na terceira. Ele foi. Era todo pequenino. Dava um medo desgraçado de, no meio da noite, virar-se e esmagar o coitado. Não aconteceu. Mas houve algo bastante pior.

Naqueles dias, um gato teimava em entrar em nossa casa. Era um siamês bonito, até, mas nós não tínhamos nenhuma condição de abrigar mais um par de patas. Alguém chegou a alimentá-lo, se não me confundo depois de tantos anos, mas nós não queríamos ficar com ele. Pode parecer preconceito, mas ele não era um sujeito muito agradável. Tinha uma expressão seca, fria. Fosse gente, seria um daqueles caras mal encarados que você encontra num bar ou restaurante e fica desconfortável até a hora que ele decide ir embora. O problema é que este siamês não queria nos deixar.

Naquela noite em que minhas irmãs levaram o Juninho para o quarto delas, a madrugada se tornou em uma das piores de nossas vidas. Este siamês passou pelo telhado, entrou em nosso quintal e encontrou a janela do quarto delas. Não sei dizer exatamente como ele conseguiu, até porque estávamos todos dormindo, mas ele bateu na janela – que provavelmente estava destrancada – até conseguir abri-la. Entrou no quarto, abocanhou o Juninho pelo pescoço e o arrastou para o corredor que interligava os três quartos – o meu, o da minha mãe e o das meninas.

Acordamos com a barulheira, espantamos o gato louco, mas era tarde. Era tanto sangue que escorria pelo pescoço de Juninho… Tentamos estancar, mas ele morreu pouco depois. Por uma semana, chorávamos todos. Minha mãe, que já tinha mais de 40, eu, com 12 ou 13 anos, e minhas irmãs, com 8 e 10, mais ou menos.

No dia seguinte, o namorado da minha mãe daquela época conseguiu encontrar o siamês, enfiá-lo em um carro e levá-lo para bem longe. Disse ele que abriu o porta-malas e espantou o bichano por algum lugar da Zona Norte de São Paulo.

Fato é que dias depois, conosco ainda traumatizados por aquela tosca madrugada, o siamês reapareceu em nossa porta. Quando vimos, não acreditamos. Que tipo de maldição seria aquela? Que gato conseguiria atravessar a maior metrópole da América Latina e reencontrar exatamente a mesma casa? Temíamos principalmente pelos outros dois gatos, a Xuxa e o Rafinha, e também por nós mesmos. Mas aquele siamês era um detalhe diferente: ele tinha o rabo bifurcado. É, bifurcado. Bem no fim dele, em vez de uma ponta, havia duas. De longe, parecia uma bolinha.

Não sei como o filho da mãe conseguiu, mas ele conquistou a todos apesar do medo que tínhamos de ele ser igual ao siamês “malvado”, por assim dizer. Acomodou-se na garagem, encarou a porta de entrada até que nós o deixássemos entrar e ficou. Ficou por uma década, um pouco mais, e ganhou o coração de todos neste meio tempo.

O Bidu era o gato que todos gostavam. Todo mundo. Não houve uma pessoa que tivesse visitado minha casa e não tivesse a deixado com uma opinião diferente da que tinha sobre felinos. Há quem diga que gatos são “traiçoeiros”, “egoístas”, que “se apegam à casa, não ao dono” – duvide seriamente do conhecimento e, em último caso, do caráter de quem propaga tais besteiras. Mas mesmo ignorantes gostavam do Bidu.

A Xuxa, por exemplo, era uma gata genuinamente gata. Ela escolhia um canto para passar a maior parte do tempo por semanas. Até escolher um novo canto. Dormia conosco, sim, mas no pé da cama, e saía dali logo que quem estivesse dormindo encosta-se nela. Toda ofendida, inclusive. Gostava de carinho na cabeça, na garganta, só das pessoas que ela aprovava, e olhe lá. Colo? Não, obrigada. Minha avó, que quando nos visitava gostava de fazer um carinho menos convencional nela, ganhava mordidinhas no calcanhar e miados estridentes, do tipo “me deixe em paz”.

O siamês era quase o oposto em tudo. Quando dormíamos, era engraçado. Não sabíamos se ele fazia consciente ou instintivamente, mas ele passava um pouquinho de cada noite em cada cama. Começava a noite deitado com minha mãe, me fazia companhia no meio da madrugada e acordava com minhas irmãs. Desse jeito, todos tínhamos a impressão de que dormimos com o Bidu. E não era no pé da cama, não. Ele se enfiava no meio dos braços, arrumava espaço ali perto do travesseiro e ficava. Ganhava carinho em qualquer parte do corpo: cabeça, pernas, barriga. Ronronava praticamente no primeiro contato e rolava no chão com a barriga pra cima para aproveitar melhor. No princípio, tinha medo de altura por algum trauma do período que não esteve conosco, alguns meses, mas virou fã de colo logo que ganhou confiança.

Todo este carinho foi fundamental para minha mãe. Em 2007, ela descobriu que tinha um tumor na mama. Uma doença terrível com um tratamento ainda mais terrível. Até hoje não sei dizer qual a pior parte do câncer. Fez a cirurgia, retirou o seio e se submeteu às sessões de quimio e radioterapia nos muitos meses seguintes. Ela tomava todo tipo de vitaminas e sucos para se fortalecer, mas a realidade é que a quimio tirou dela o seio, os cabelos, o paladar, a força para se locomover normalmente e, mais grave, a vontade de continuar viva. Houve tempos em que ela ficava o tempo inteiro no quarto, sem querer subir as escadas para chegar à cozinha ou à sala. Eu e minhas irmãs, na escola e mantendo aberta a lan house que nos sustentava, não podíamos fazer muito mais. Quem a acompanhou naquele quarto o tempo inteiro foi o Bidu.

É incrível a força que um bicho pode te dar só de ficar do seu lado, ronronando e dormindo no seu colo, e te dar a sensação de que não está sozinho neste mundo. A gente acha o tempo todo que tem um animal para cuidar dele e, depois, descobre que ele é que cuidava da gente. Digo por experiência. Três anos depois, foi a minha vez.

Minha mãe morreu em 20 de dezembro de 2009. O câncer da mama havia sido retirado, tratado e, aparentemente, “curado” – se é que há cura para câncer. Mas voltou em uma vértebra. O tratamento recomeçou, uma nova cirurgia seria feita, e tudo ia “bem”. É inacreditável como o corpo desfalece de uma semana para outra. Num dia aparecem dificuldades para respirar, noutro a ambulância chega, e por fim uma parada cardiorrespiratória no começo da madrugada em um hospital público acaba com a vida. Era aniversário da minha avó, mãe dela, praticamente véspera de Natal, uma soma de coincidências que deixaram a ocasião ainda mais amarga para todos que ficaram.

Minha vida recomeçou e, daquele dia em diante, virei outra pessoa. Ouvi numa série meses depois que o lado bom de uma tragédia é que a gente pode reconstruir a vida como a gente quiser. Foi o que fiz. Minhas irmãs tiveram de ir morar com meu pai, pois ainda tinham menos de 18, aluguei a maior parte da minha casa para me sustentar financeiramente e passei a morar sozinho nos fundos. Por que não fui morar com meu pai? Eu tinha 20 anos. Não era hora de ficar sozinho, talvez. Mas eu tinha quatro patas que dependiam de mim, Xuxa e Bidu, e não havia razão em deixá-los com alguém ou, muito menos, sacrificá-los. Não é assim, ignorando responsabilidades, que se começa uma nova vida. Nem dava para levá-los comigo para meu pai. Pois fiquei.

A merda – perdoe-me o palavrão – é que também apareceu um câncer no fígado da Xuxa neste período. Ela já tinha para lá de 14 anos, uma cirurgia era praticamente impossível, pois o risco de matá-la era enorme, então não havia muito o que se fazer. O fígado, coitadinha, cresceu e parecia haver uma bola de tênis dentro da barriga dela. Dava para sentí-lo com as mãos. Até hoje não sei explicar por quê, mas a bichinha ficou doida. Ela rasgava sacos pretos de lixo para descobrir o que havia dentro até quando não havia lixo algum e, portanto, nenhum cheiro. Comia, comia, comia. Tudo o que aparecesse pela frente. Quando eu comprava um filé de frango e jogava alguns pedacinhos para que ela e o Bidu comessem, ela engolia o dela, engolia o dele e ainda pedia mais. Até macarrão com molho de tomate  – sem nenhuma carne, frango ou peixe – ela atacava quando conseguia invadir a mesa sem permissão.

Xuxa
Xuxa

A relação entre Xuxa e Bidu nunca foi das mais cordiais. Ele, com a metade da idade dela, vivia pentelhando-a, provocando-a, correndo atrás dela para brincar. Ela ficava irritadíssima e mordia, arranhava, até fazê-lo parar. Mas naqueles tempos aquilo mudou. Eu saía para trabalhar durante o dia e a tarde inteiros, e ele ficava ao lado dela. Tentava lambê-la e só não conseguia porque ela botava os dentes para fora e o afastava. Fomos nesse ritmo, os três, por uns três meses. Aí, de novo, o corpo entregou os pontos. De repente, ela não conseguia mais andar muito, não comia, mal conseguia se levantar até que, um dia, não levantou. Quando a encontrei, levei-a mais uma vez às pressas para o veterinário. No caminho, deu para perceber que ela já não piscava, ficava com os olhos fixos, inertes, e não tinha força para fechar a boca. A eutanásia era inevitável. Eu a perdi poucos meses depois da minha mãe. Agora eram só eu e o Bidu.

Deve haver quem ache um exagero, um drama, mas eu não sei se teria aguentado as pancadas sem o Bidu. Responsabilidades da vida adulta, contas, último ano da faculdade, dívidas como herança, sentimentos em frangalhos, tudo é muito dolorido, mas o que há de pior em morar sozinho é a solidão. E eu não estava totalmente sozinho.

A minha relação com ele estreitou muito, afinal só tínhamos um ao outro no dia a dia, todas as noites. Quando eu voltava do trabalho, encontrava-o à porta, esperando, miando, como se ele soubesse exatamente a hora que eu iria retornar. Conversávamos o tempo inteiro, ou uma versão próxima de um diálogo. Eu dizia qualquer coisa, ele miava de volta, eu fazia uma pergunta, ele miava de volta. Provavelmente ele não entendia o que eu dizia, certamente eu não entendia o que ele respondia. Era um diálogo entre dois loucos, mas funcionava. Nós tínhamos amparo.

Confesso: eu me aproveitei da personalidade dele. Era o gato que quando qualquer visita chegava em casa, roçava nas pernas dela e deitava em seu colo assim que ela sentasse em qualquer lugar. Mas não era chato como um cachorro, não lambia, não ficava miando e descia do colo se a pessoa não se sentisse confortável. Fora os olhos azuis. Irresistível. Era, portanto, uma arma e tanto para conquistar mulheres. Mais difícil era levar as garotas que eu eventualmente conhecia para casa. Porta adentro, o Bidu era tão “fofo”, tão “bonzinho”, que o trabalho ficava mais fácil. Foi assim que conheci minha namorada e algumas outras que não chegaram a tanto.

A vida melhorou, é verdade. De nós dois. Troquei de emprego, passei a ganhar um pouco mais, fiz drásticas melhorias na casa que morávamos. Ele ganhou potes novos de comida e água, passou a comer ração mais cara, ganhava uns potinhos de algo mais pastoso e suculento algumas vezes. Nós nos entendíamos muito bem, embora ainda não desse para conversar em português. Quando ele miava, eu sabia se faltava ração, água ou se eu precisava limpar a caixa de areia. Quando ele cagava ou mijava no piso, sabia que era melhor se esconder em algum móvel para não tomar uns tapas na bunda. Sabe uma coisa engraçada? Ele me acordava. Dava mordidinhas no queixo ou no nariz enquanto eu ainda estava dormindo até acordar, mesmo jeito que usava para despertar minha mãe anos antes. Às vezes era desconfortável, principalmente aos fins de semana, mas era divertido. Virou uma relação de pai e filho, de irmãos, sei lá.

Perdi meu bom emprego. O que, a esta altura, desculpe-me se parecer pouco humilde, não era nenhuma tragédia. Definitivamente, eu já havia passado por coisa pior nos anos anteriores. O Bidu ganhou companhia em tempo integral por mais de um mês. Ele era muito saudável, mas o que mais preocupava a mim, à minha avó e às minhas irmãs, era o fato de ele passar muitas horas sozinho durante o dia. Assistimos TV por dias e dias. Os 120 episódios de Lost, série que eu não tinha visto até então, foi atração suficiente para nós dois. Eu no sofá, ele no meu colo. Problema resolvido.

Não sei dizer se não percebi antes ou se aconteceu rápido demais, mas ele emagreceu absurdamente. Perdeu um quilo, um quilo e meio. Dava para sentir as costelas quando se passava os dedos pelas costas dele. Fiquei chocado. Comprei algumas daquelas melecas de frango e carne que ele gostava. Nada. Não comia. No máximo lambia um pouco, mas mastigar, mesmo, não. O cocô saía quase totalmente líquido. Parecia uma diarreia. Quando levei-o ao veterinário, suspeitamos que era apenas uma infecção intestinal, agravada por uma anemia, e tratamos com antibiótico e vitaminas.

Aí vieram mais algumas visitas ao veterinário para tomar injeção com antibiótico. O curioso é que, ao contrário dos outros gatos presentes no consultório, eu nem precisava levá-lo em alguma caixa. Tudo o que eu tinha de fazer era dar uns tapinhas no meu ombro, e ele subia. Chegávamos e esperávamos sentados. Eu na cadeira, ele em mim. Entrávamos e saíamos sem choro nem mio. O médico media temperatura (se você já viu como um veterinário mede a temperatura de um animal, sabe que não deve ser muito gostoso), examinava-o, injetava antibiótico com uma agulha nas costas dele, e o Bidu ficava numa boa, como quem vai ao médico mas sabe que só tem uma virose. Uma vez, subiu no meu ombro de novo na hora de ir embora e o veterinário soltou: “vocês são muito apegados, né? Ele parece um papagaio”.

A melhora durou poucos dias. O Bidu voltou a parar de comer, as fezes voltaram a ficar líquidas, e nós voltamos ao veterinário. Desta vez, tive de levá-lo para uma ultrassonografia para descobrir o que havia na barriga dele. Ganhamos mais um passeio de carro, desta vez para um consultório mais distante de casa. Tristemente, voltamos de lá com um resultado bastante ruim: câncer no intestino. Bem no começo da manhã seguinte ele faria a cirurgia para retirá-lo e voltaria para casa depois de mais dois dias. Ao contrário da Xuxa, ele tinha condições de passar pela cirurgia, receber cuidados por um tempo e ficar bem por mais alguns anos. “Ele pode morrer de velhice ou pode morrer atropelado, mas não vai morrer de câncer”, eu disse.

Errei. A cirurgia correu bem, mas o corpo dele não se recuperou da anestesia geral. Hipotérmico, ficou entre colchas recebendo soro e cuidados médicos por dois dias. Na manhã seguinte, recebi a ligação do veterinário: ele teve uma parada cardíaca e, mesmo com os esforços para reanimá-lo, “veio a óbito”, segundo o relato do veterinário.

Não ficaram arrependimentos, e isto é reconfortante. Saber que eu fiz tudo o que pude para fazê-lo feliz durante a vida e para salvá-lo no fim dela, lembrar quantas vezes cheguei uns minutos depois no trabalho porque fiquei em casa brincando com meu “cãozinho”, esses são pensamentos que a minha razão usa para diminuir a dor. Mas estou abobalhado. Ando pela casa mais vazia do que normalmente, lembro de coisinhas pequenas e tento explicar ao telefone para as pessoas que gostavam dele o que aconteceu. Fosse gente, haveria um velório cheio de familiares, amigos e conhecidos o esperando. Ficou um vazio no peito de todos. Todo mundo amava o Bidu.

Outro gato? Não, obrigado. De jeito nenhum. Não dá para preencher este espaço como quem troca de emprego, como quem troca de caso. De novo, só quando eu tiver filhos (humanos, mesmo), para que eles possam ter a chance que eu tive de crescer rodeado de animais. Pra mim, é quase um requisito pra formação de caráter. Fora que, se eles derem a sorte de ter um Bidu, serão incontáveis boas recordações e histórias.

Vá em paz, meu velho. Vou sentir sua falta.”

Rodrigo Capelo

 

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