A vida animal e sua fragilidade: o que há por trás do cachorro agredido no Carrefour
No último dia 28, uma cadela sem raça definida foi agredida na loja de Osasco do supermercado Carrefour. O caso ganhou enorme repercussão nacional e internacional. Mas o que há por trás de incidentes como esse?
Chegou a mim uma denúncia de agressão por parte de um segurança do Carrefour. Muitas pessoas publicaram sobre o desejo de punição severa ao estabelecimento. Um discurso de ódio imperou, agregado a fotos e vídeos muito fortes do estado do animal.
Antes de me posicionar nas redes sociais, resolvi dar oportunidade do Carrefour contar o ocorrido e se defender. Para tanto, entrei em contato com a assessoria de imprensa. Fui informada sobre os fatos e recebi uma nota. A qual transcrevo aqui:
“O Carrefour reconhece que um grave problema ocorreu em sua loja de Osasco. A empresa não vai se eximir de sua responsabilidade. Estamos tristes com a morte desse animal. Somos os maiores interessados para que todos os fatos sejam esclarecidos. Por isso, aguardamos que as autoridades concluam rapidamente as investigações. Qualquer que seja a conclusão do inquérito, estamos inteiramente comprometidos na reparação desse dano”.
Não satisfeita, questionei diversas contradições nas histórias contadas pelos assessores e nos vídeos oriundos das câmeras de segurança do estabelecimento. Segundo os assessores, o animal encontrava-se há três dias vagando pelo estacionamento. Após diversas reclamações de clientes, que haviam sido atacados pelo animal, o supermercado chamou a zoonose para resgatar o animal. Chamados esses, que, segundo a assessoria, não foram atendidos.
Alguém explica que o papel da zoonose não é resgatar animais, por favor!
Aí começam as contradições:
1- segundo os funcionários das lojas localizadas dentro e próximas ao supermercado, o animal estava lá há 5 dias, estava sendo cuidado e alimentado por diversas pessoas, inclusive funcionários do Carrefour. Mas estes faziam escondidos, para não serem repudiados pelos superiores. E o animal não apresentava agressividade com clientes. Inclusive, andava no meio deles, como mostram os vídeos das câmeras de segurança.
2- segundo o biólogo Fábio Cardoso, da secretaria de Fauna e Bem-Estar Animal de Osasco, a zoonose recebeu apenas uma ligação, de uma cidadã (não ligada ao Carrefour), na manhã do dia 28, avisando sobre uma animal atropelado. Nenhuma ligação anterior foi recebida referente a esse animal.
3- o mais grave! Segundo uma funcionária de uma das lojas, um funcionário da Drogaria Carrefour já tinha se comprometido a adotar o animal. Tinha comprado casinha e preparado sua casa para levar a cadelinha. No dia de buscar sua nova peluda, encontrou apenas o rastro de sangue. Ela já havia sido espancada e levada para o CCZ. Sem conseguir lidar com a situação, o funcionário foi transferido para outra unidade.
Voltando a historinha para boi dormir, contada pela assessoria do Carrefour…
Como havia tido reclamações dos clientes, um segurança foi designado para levar a cadela para fora da área do supermercado. Mas como ela iria se alí era onde encontrara comida e carinho? Ao espantá-la, segundo eles, acabou machucando a pata. Por isso o sangramento.
Após ferida e sangrando, cadela tentou buscar abrigo
Espantá-la é muito eufemismo para o que ocorreu. As câmeras de segurança mostram o segurança conduzindo a cadela. Sem sucesso, ele aparece com uma barra de ferro, correndo atrás da cadela. Momentos depois, as câmeras flagram o animal caminhando com rastro de sangue.
Segundo a mesma assessoria, o animal não morreu por isso. Mas pela forma agressiva como o agente do centro de zoonose conduziu a captura do animal. Eles fizeram questão de pontuar a utilização do Cambão (tipo uma vara para laçar o animal) e o consequente desmaio do animal. O animal veio a óbito no Centro de Zoonoses.
Questionei sobre o uso de brutalidade do agente com o cambão. Fábio confessou que, mesmo após reunião com as ONGs, não viu as imagens da condução dos agentes. Mas mesmo assim, disse que os profissionais são treinados e capacitados para esse tipo de resgate.
Após minha solicitação, Fábio assistiu aos vídeos. “Observei que houve tentativa de contenção com a corda, sem sucesso. Após, foi utilizado o cambão e o animal foi colocado no carro para ser levado ao CCZ e faleceu”. Incomodada, voltei a questionar se ele havia assistido a parte que o animal desmaia por excesso de força na utilização do equipamento. “Foi aberto um inquérito para verificar as condutas do agente” respondeu Fábio.
Você acha que parou por aí?! Na-na-ni-na-não!
O agente apurou o caso como um animal de rua atropelado. Após seu óbito no CCZ, a cadela foi cremada, sem necropsia, queimando a prova do crime. Nenhum boletim de ocorrência foi lavrado, mesmo havendo policiais presentes no resgate do animal, ainda no supermercado.
COMO NINGUÉM VIU OU OUVIU SOBRE AS AGRESSÕES SOFRIDAS PELO ANIMAL?!!!!
Em outubro desde ano, foi lançado o GUIA PRÁTICO PARA AVALIAÇÃO INICIAL DE MAUS TRATOS EM CÃES E GATOS pela Comissão de Bem-Estar animal do CRMV-SP. Perguntei ao Fábio se os agentes tiveram acesso a essa material. A resposta foi SIM.
OI?! TEM CERTEZA?! Se eles tivessem lido o guia, teriam conseguido perceber sinais de maus tratos e, talvez, modificado completamente o rumo desta história. O animal poderia ter sido contido de uma forma mais branda, teria sido lavrado o BO e os responsáveis teriam mais chances de punição. E mais grave de tudo: o funcionário da drogaria ainda teria seu desejado peludo.
Segundo Fábio, os fatos serão apurados devidamente. No inquérito do caso, serão ouvidos o segurança agressor, o agente, o policial e todos os envolvidos. Inclusive foi aberto um processo administrativo contra o CCZ de Osasco.
Para minimizar a responsabilidade da prefeitura de Osasco, Fábio falou sobre a responsabilidade do Carrefour sobre o animal, já que este estava em suas dependências, bem como sobre a demora na prestação de socorro. Quando a zoonose chegou ao local, o animal estava bastante debilitado.
E os protetores?
Dois dias após as agressões, diversas pessoas, incluindo funcionários do Carrefour, entraram em contato com a ONG Bendita Adoção, para relatar o ocorrido. Duas dessas pessoas foram testemunhas oculares das agressões. Por que, diacho, não interviram na hora, ou chamaram a polícia, ou ligaram para um protetor?! Muita omissão ocorreu nesta história… E continua ocorrendo. De todas as testemunhas, apenas uma aceitou depor no inquérito instaurado pela Delegacia de Crimes Ambientais de Osasco.
E o segurança?!
Não estou aqui para incriminar ninguém. Mas olha o que diz no guia de maus tratos:
“Nas últimas décadas, pesquisadores e profissionais de diferentes áreas do conhecimento estabeleceram correlações significativas entre o abuso de animais, o abuso e negligência de crianças, a violência doméstica, o abuso de idosos e outras formas de violência. O ato de maltratar animais não é mais visto como um incidente isolado que possa ser ignorado e sim pode, muitas vezes, representar um crime indicador ou preditor, sendo um sinal de alerta de que outros indivíduos no agregado familiar possam não estar seguros.
Vários aspectos da vida em comunidade e da saúde pública estão relacionados aos casos de negligência, crueldade ou violência ativos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a violência doméstica contra mulheres e crianças como um problema de Saúde Pública. Considerando que pesquisas internacionais indicam a conexão entre a violência humana e os maus tratos contra animais, fica claro que os atendimentos de denúncias de maus tratos a animais precisam ser melhor monitorados pelos órgãos competentes. No Brasil, um estudo realizado a respeito da violência doméstica apontou que 71% dos animais pertencentes a mulheres que haviam sofrido violência doméstica tinham sido submetidos a maus tratos naquele domicílio.
No Estado de São Paulo, deparamos com a inexistência de cursos preparatórios e de manuais informativos que auxiliem o agente público no momento de uma inspeção para avaliação inicial de casos de maus tratos. O presente guia traz aspectos que envolvem necessidades e cuidados básicos com cães e gatos, bem como, informações sobre uma avaliação do ambiente no qual o animal está inserido e do manejo oferecido pelo tutor” aponta o guia.
Retirado: Estadão